Relatos iniciais do DIVERSA

O projeto nasceu da existência de duas demandas que se complementavam:

(A) Estimular a capacidade dos alunos interpretarem e darem sentido às vivências culturais e sociais de sua comunidade, como forma de resistência e fortalecimento dos valores locais, tendo em vista o processo de enfraquecimento e subvalorização da cultura produzida em sua comunidade.

(B) Necessidade de incluir o aluno G.S. (autista), tendo em vista a tendência do mesmo bater, morder e agredir os colegas de sala como meio de indução de estímulos sensoriais para compreender o mundo. Essa situação culminou em rejeição e conflito entre os pais dos alunos.

Gustavo* era um aluno com autismo que apresentava um frágil desenvolvimento da linguagem formal, tendo em vista sua dificuldade em estabelecer relações produtivas com seus colegas. A partir da observação do garoto com seu grupo nos diversos espaços da escola, e atendendo aos apelos de sua professora da sala regular durante as reuniões de planejamento, percebi que era necessária uma abordagem transversal e interdisciplinar, que oportunizasse à toda turma a construção de uma nova identidade relacional. Como durante as atividades realizadas no atendimento educacional especializado (AEE) eu já havia notado o interesse do estudante quando trabalhávamos com música, decidi investir nesse elemento para estruturar o trabalho.

Primeiro, propus à docente da turma que realizássemos círculos de conversa, com o objetivo de identificar quais eram as impressões das crianças quanto às especificidades de Gustavo. Após sondá-las atentamente, iniciamos um trabalho de reconhecimento de questões ligadas a identidade, diferenças e preconceito presentes nas falas. Com essas informações em mãos, iniciamos a construção das atividades. Convidamos os graduandos de música e pedagogia do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e a professora da biblioteca para também participar do projeto. Junto, definimos que a iniciativa seria voltada à vivência compartilhada de experimentações artísticas e comunicativas da comunidade, mediadas pela música.

Na abordagem proposta pelo projeto o processo de desenvolvimento está muito além apenas de seus aspectos físicos ou intelectuais. Esse processo envolve outras questões, certamente tão complexas quanto às da maturação biológica. Dessa forma, almejamos dar abordagem ampla ao conceito de desenvolvimento, abarcando os aspectos de amadurecimento afetivo e social, sem deixar de lado, obviamente, o aspecto cognitivo.

Para tal, propomos um trabalho voltado à vivência compartilhada de experimentações artísticas e comunicativas, mediadas pela música, visando aproximar os alunos entre si e os pais dos alunos também entre si e entre seus filhos, contribuindo na construção de novos significados que possam nutrir as relações que se estabelecem informalmente no dia a dia da escola. Essa abordagem possibilita o desdobramento de novos níveis de experimentações comunicativas, tais como: jogos dramatizados, expressão corporal, jogos cantados, mímicas, imitações, literatura infantil, desenvolvimento pictórico, exploração folclórica, resgate e valorização da história da comunidade… elementos fundamentais na construção da identidade cultural, da capacidade comunicativa, da organização linguística e do desenvolvimento da competência social dos alunos.

Também decidimos convidar duas idosas do bairro, mulheres experientes e com forte influência na história do local, como elementos de mediação no processo de construção da identidade cultural das crianças e dos pais, pois representam o resgate de vivências de um outro tempo e de um outro espaço (mas ainda no mesmo espaço) constituindo poderosos catalisadores de valorização da identidade cultural local, explorando de forma lúdica e informal a humanização presente nas relações mediadas pelas tradicionais brincadeiras do passado, possibilitando às crianças, aos pais e à comunidade escolar em geral, o resgate e valorização da cultura popular, partejando o ético e o estético da escola de um novo tempo: escola que tenha compromisso com a transformação social, que permita o diálogo entre diferentes saberes e que fortaleça a construção cidadã do processo democrático.

Metodologia Utilizada

A metodologia é participativa, sociointeracionista, socioafetiva e com foco na aprendizagem significativa, priorizando a ludicidade, a vivência musical/corporal e as construções partilhadas culturalmente como instrumentos para construir significados e dar sentido ao mundo social.

O socioconstrutivismo e o sociointeracionismo animam os trabalhos, revelando a importância da experiência histórica e da prática sociocultural para o desenvolvimento mental do ser humano. Sob tal ponto de vista, a aprendizagem é um processo de interiorização dos sentidos construídos a partir da experiência, da maturação e da interveniência que os mediadores sociais proporcionam concomitantemente, além do desenvolvimento cognitivo decorrente desta relação.

Também defendemos a abordagem socioafetiva, presentes na educação para a paz e na educação popular, pois cremos ser necessário modificar o conteudísmo bancário presente nas escolas e acrescentar o componente crítico, afetivo e experimental, essenciais à construção do conhecimento e da cidadania, por respeitar a experiência pessoal e a natureza emocional que constitui o ser humano integral.

A aprendizagem significativa, presente no projeto defende a importância do processo de assimilação que ocorre com a criança na construção do conhecimento, a partir do seu conhecimento prévio. Dessa forma, para que ocorra uma aprendizagem significativa é necessário: disposição do sujeito para relacionar o conhecimento; material a ser assimilado com “potencial significativo”; e existência de um conteúdo mínimo na estrutura cognitiva do indivíduo, com subsunções em suficiência para suprir as necessidades relacionadas.

A proposta pedagógica do projeto contempla as perspectivas da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade entre os diversos saberes artísticos, visando o enriquecimento da formação das crianças, dos pais, dos professores e dos acadêmicos de música e pedagogia da UFC. De tal forma, acreditamos que a vivência musical seja o meio que possibilite o desdobramento de novos níveis de experimentações comunicativas e artísticas, tais como: jogos dramatizados, expressão corporal, jogos cantados, mímicas, literatura infantil e tradições orais, imitações, psicomotricidade e biodança, elementos que a nosso ver contribuem na organização linguística, no amadurecimento afetivo, no respeito à pluralidade cultural e à diversidade, na capacidade de apreciação e produção artística e no desenvolvimento da competência linguística e social dos alunos.

Conclusão

A primeira edição do projeto finalizou em janeiro de 2013, com o sétimo encontro. Nesse encontro pudemos confluir as duas demandas que iniciaram o trabalho (pois no sétimo encontro todo o público do projeto esteve presente.), quais foram:

  1. A relação da comunidade com o aluno autista.
  2. A concepção da comunidade no trato da arte com o cotidiano.

Esse foi um momento de encontro real, pois os pais e os alunos puderam conhecer uns aos outros e expressarem, sob a mediação das brincadeiras e das idosas do bairro, a dimensão humana verdadeira que é tão preterida nas relações do dia a dia da escola. Um dos maiores legados desse projeto foi a aproximação das crianças com o aluno G.S. e nesse dia, os pais puderam constatar essa realidade, o que favoreceu a aproximação destes com a família do aluno e com o próprio aluno.

A arte foi fundamental nessa conquista, pois sua proposta libertária transcende o aqui e o agora e no caso do projeto, transcendeu até mesmo barreiras linguísticas e atitudinais, dotando de vida e de encanto todo o aprendizado das crianças e sendo em si, um aprendizado valioso e inesquecível.

No final do ano de 2012, o projeto “Eu canto, tu cantas e juntos crescemos” foi selecionado pela Fundação Banco do Brasil e Revista Fórum como vencedor na categoria nordeste do Concurso Aprender e Ensinar de Tecnologias Sociais na Educação. Esse trabalho encontra-se no banco de Tecnologias sociais do Banco do Brasil, podendo ser replicado nacionalmente e internacionalmente.

E para finalizar, é preciso dizer que percebemos, e isso sob certo assombro (pois às vezes santo de casa não obra milagre), que ações como esta do projeto “Eu Canto, Tu Cantas e Juntos Crescemos”, que muitas vezes aos olhos desavisados pode parecer não ter muito significado frente às inúmeras dificuldades e demandas da escola, FAZEM SIM A DIFERENÇA NA VIDA DAS PESSOAS: Pessoas pequenas, pessoas grandes, pessoas leigas, pessoas especialistas… pessoas humanas. O projeto tornou a escola viva, promoveu o encontro entre as partes, revelou gentilezas que existiam, promoveu a dimensão do cuidado, fortificou autoestimas, articulou saberes, democratizou espaços, incluiu uma família e uma criança que sofriam com o preconceito e possibilitou o direito de pensar, produzir e visibilizar a arte e o artista que todos somos.

O projeto será reeditado em agosto do corrente ano e agora sob a perspectiva do letramento e da arte como veículo de abertura para a construção de uma ação pedagógica que não prescinda a ação política na efetivação da cidadania e dos direitos humanos. Esse novo desdobramento objetiva aliar mais uma vez a arte, a comunicação e a inclusão, dialogicamente, construindo colaborativamente o letramento das crianças, em uma proposta que transcenda o aspecto meramente grafológico da linguagem, mas que a mesma seja tradução e traduzida pela arte como repertório do cotidiano e da existência. Material para próximos capítulos….

Participante do Prêmio Educador Nota 10 – 2013

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