Escrita e alfabetização de crianças com transtorno do espectro autista (TEA)

Um dos principais problemas enfrentados na escolarização de pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) é o fato de que muitas delas experimentam dificuldade para estabelecer uma relação socializada com os outros. Nesse sentido, mais do que a chance de aprender, a escola oferece a crianças com autismo uma certidão de pertinência ao proporcionar-lhes o lugar de “estudantes”. Com a inclusão, aposta-se no poder das diferentes produções discursivas presentes no ambiente escolar de delinear, assegurar e sustentar o lugar social de aluno¹.

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Contudo, sabemos como é penoso para os educadores terem estudantes imunes ao estabelecimento do laço e do contato social. Alunos que não têm curiosidade pelo conhecimento e que não entram no regime das relações e trocas sociais participam de maneira atípica das atividades. Não que todos os estudantes com esse diagnóstico sejam necessariamente assim. Mas quando o transtorno vem acompanhado dessas características, a angústia do professor é quase inevitável. Mas por que é assim? E como reverter tal situação considerando que a inclusão escolar enquanto direito é fato indiscutível? A resposta está em questionar e discutir as crenças pedagógicas vigentes.

O trabalho de escolarização das crianças com autismo exigirá dos professores uma reflexão sobre os processos usuais de ensino e aprendizagem, bem como um olhar diferente. Um olhar que leve em conta um estudante que não está em posição de curiosidade, mas que aprende de maneira específica e pouco convencional. Para os educadores, isso se apresenta como um enigma e um desafio: afinal, como ensinar a quem não demanda o saber?

Mudança de perspectiva para incluir

As perguntas mais frequentes de professores de alunos com TEA costumam ser: “como trabalhar se não somos especializados no transtorno?”, “como alfabetizar uma criança que não se interessa pela leitura e pela escrita e só tem interesse em matemática?” ou “como ensinar o conteúdo a um estudante que não me dirige a palavra nem o olhar?”. Essas inquietações têm, como pano de fundo, o discurso pedagógico tradicional que atrela o educar às noções de desenvolvimento oriundas do campo da psicologia. Essa pedagogia vigente preconiza como tarefa da educação escolar implementar esses processos, sobretudo o cognitivo.

É a ênfase a esses aspectos que muitas vezes inviabiliza que o docente tome a criança com autismo como aluno de fato. Quando um estudante não fala, não responde às solicitações, não brinca com os demais e apresenta um grafismo rudimentar, o professor o vê como uma pessoa com atrasos no desenvolvimento. E que, portanto, está aquém dos processos de alfabetização e letramento. O educador, então, não se sente habilitado para exercer sua tarefa e, muitas vezes, supõe que esse aluno só poderá dar conta de atividades da educação infantil.

Nesse ponto, é preciso questionar a pedagogia tradicional de modo a permitir que a escola repense suas práticas fora de uma perspectiva desenvolvimentista. Trata-se de possibilitar que ela tome essa criança como estudante, não exclusivamente pela ótica do desenvolvimento cognitivo, mas incluindo também o sujeito psíquico, dimensão que não coincide com o desenvolvimento biológico. Só assim novas formas de aprender e ensinar serão viabilizadas.

A inclusão de alunos com TEA requer, portanto, transformações importantes, sobretudo na maneira como os educadores veem esses alunos, entendem o próprio papel e concebem a relação com o saber e o conhecimento.

Escrito inconsciente e escrita alfabética

O psicanalista Gérard Pommier, em seu livro “Nacimiento y renacimiento de la escritura”, assinala que a aprendizagem da escrita está para além do domínio de uma técnica de alfabetização ensinada na escola. Segundo o autor, se uma criança ainda não pode escrever, não é por falta de maturidade, prontidão ou por problemas em seu desenvolvimento cognitivo, mas porque há um caminho subjetivo a ser percorrido antes da construção da escrita. Mas é importante considerar que, a partir das formulações de Freud e Lacan, os psicanalistas questionam a ideia de que a fala antecede a escrita. E, portanto, também de que a escrita surgiu para representá-la. Segundo eles, é a fala que passa a ser uma espécie de representação do escrito inconsciente.

Assim, considerando a capacidade de maleabilidade das estruturas psíquicas própria da infância, ou seja, de haver mudanças importantes nesta fase da vida, no caso do autismo, a relação do sujeito com a linguagem pode ser reordenada pela via da escrita, uma vez que o escrito inconsciente é o suporte para a escrita alfabética. Poderíamos dizer que a escrita alfabética pode servir para o autista como uma nova possibilidade de estruturação psíquica.

No movimento gradual de aquisição da escrita, pode ocorrer uma operação de linguagem de dupla mão: uma escrita será construída, mas também um sujeito se construirá como efeito do desenvolvimento da escrita. Ao mesmo tempo que se constrói uma escrita, ela o constrói, em um jogo de reorganização do campo simbólico ou da linguagem.

Educação terapêutica

Podemos dizer, então, que, para a psicanálise, a aquisição da escrita é uma forma de tratar as crianças com autismo. Ao sujeitar-se ao funcionamento da estrutura da língua e curvar-se ao ordenamento do código da linguagem, a escrita alfabética oferece a elas uma nova chance de ordenar sua relação com o outro ou com a linguagem.

Ou seja, o trabalho de alfabetização dessas crianças no âmbito escolar é uma forma de ajudá-las a construir modos mais flexíveis de referência à linguagem, abrindo possibilidades de laço social pela via da escrita. Daí o termo “Educação terapêutica”: para esses alunos, estar na escola cumpre uma dupla função – ambas com valor terapêutico: por um lado, promove a circulação e o laço social e, por outro, o reordenamento do campo simbólico.

Nesse sentido, o educador não precisa ser um especialista em transtornos ou tratamentos. Ele precisa tratar de seu aluno, entendendo o tratar como o ato de cuidar dessa criança para ajudá-la a encontrar modos de dizer sobre si.

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Alfabetização de crianças com autismo

Aos 10 anos, Roberto chegou ao Grupo da Escrita. Ele cursava o 4º ano e seus professores sentiam dificuldades para abordá-lo pedagogicamente. Era um menino muito quieto e arredio. Em sala de aula, ficava em silêncio, observando os colegas e fazendo rabiscos. No grupo, passava o tempo todo sentado, não interagia e não solicitava nenhum dos materiais sobre a mesa (papéis, lápis coloridos, canetas, livros, revistas, gibis e alguns jogos).

Nos primeiros encontros, apesar dos convites feitos pelos coordenadores do grupo, o garoto se restringia a observar. Suas primeiras produções foram:

 

Roberto fez rabiscos por algum tempo. Depois, interessou-se por uma régua com figuras geométricas e por letras móveis. Os coordenadores aproveitavam para inserir referências ao que o grupo estava fazendo, como escrever na folha dele a palavra “vaca”, animal presente no jogo do mico partilhado pelos outros integrantes.

 

O interesse do menino por contornos e linhas pontilhadas fez os coordenadores apostarem em uma atividade a partir das conversas das crianças sobre a Turma da Mônica. Foi proposto ao garoto que recobrisse o nome dos personagens pontilhados à lápis pelos coordenadores.

 

Ele não só cobriu os pontos, como também contornou cada uma das figuras dadas a ele por um colega que concordou em ajudá-lo. O interesse por recobrir palavras com letras pontilhadas aumentou. Ele passou a cantarolar canções, e nós a levávamos para o papel.

Folha repleta de escritos feitos a mão por uma criança com lápis de cor verde. É possível ler palavras como "Sapo", "não lava porque não" e "mora". Há diversas letras coladas no topo da folha.

Passados alguns meses, fomos surpreendidos por uma produção que nos mostrou que Roberto já sabia escrever “maçã” e “peixe”. Ele escreveu “pxex” sozinho, após ter coberto o desenho com a caneta azul. A palavra “peixe”, no canto superior esquerdo, foi feita pelos coordenadores após a escrita do menino.

Folha sulfite repleta de palavras e desenhos feitos por criança. É possível ler palavras como "uva", "maçã" e "laranja" e ilustrações dessas frutas.

Vemos, portanto, que o desenho “cai” e surge a palavra escrita:

 

Roberto passou a nos falar das rádios que costuma ouvir. Ele cantarolava, fazia batuques, falava e escrevia algumas frases dirigidas aos coordenadores ou colegas partilhando esses seus interesses.

 

O rápido avanço do garoto chamou nossa atenção. Não poderíamos creditar a alguns meses de trabalho terapêutico um avanço tão significativo. No final do ano, quando mostramos as produções para a mãe, tivemos a resposta. Ela contou-nos que, quando ele estava no 1º ano, tinha uma professora que acreditava muito em suas capacidades. Apesar de Roberto não fazer as atividades que ela propunha, a educadora não deixava de registrar em seu caderno as tarefas que passava para a turma. No final daquele ano, ela presenteou a família com esses registros e disse que ele estava aprendendo sim, apesar de não falar com ela nem com os colegas.

A aposta no potencial

Pudemos ressignificar as produções de Roberto ao longo daquele ano e esclarecer que as “primeiras marcas” da escrita alfabética tinham sido registradas há muito tempo. Isso graças ao dispositivo criado pela professora (educar/tratando). O trabalho terapêutico no Grupo da Escrita (tratar/educando) pôde recuperar essas marcas, fundamentais para que ele pudesse construir uma escrita para falar de si e de sua relação com o mundo.

A história de Roberto ilustra a importância da escola como ferramenta terapêutica para as crianças com autismo. Ela aponta a relevância de um trabalho docente não regido pela ótica desenvolvimentista das capacidades cognitivas. A professora do garoto não recuou frente ao desafio de escolarizá-lo e, assim, abriu espaço para um trabalho de educar/tratando.

Tomar a criança como aluno, apostar em suas possibilidades, incluindo a dimensão do sujeito psíquico, e não exclusivamente a da capacidade cognitiva como organizadoras do campo das aprendizagens, abre espaço para que novas formas de aprender e ensinar sejam viabilizadas no contexto escolar.

O trabalho com a escrita alfabética é uma via potente e possível quando se trata da escolarização de crianças com autismo. Ele possibilita a reordenação do campo simbólico para que a criança possa dizer de si e dirigir seu texto a um outro que a reconhece e a autentica. No entanto, os resultados de tal processo nem sempre são verificáveis ao final de um ano letivo.

Notas

¹ Este texto é uma versão resumida do artigo “Tratar e educar: escrita e alfabetização de crianças com transtorno do espectro autista (TEA)”, originalmente publicado no livro Concepções e proposições em Psicologia e Educação: A trajetória do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Para melhor compreensão dos pontos aqui apresentados, recomendamos a leitura integral do artigo, disponível para download em bit.ly/psicologia-escolar.

 

Marise Bartolozzi Bastos é doutora e mestre em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). É especialista em tratamento e escolarização de crianças com autismo e em formação de professores.

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